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A volta do cidadão na sociedade

A volta do cidadão na sociedade 1

Passo pela Avenida Paulista logo pela manhã, costurando entre os transeuntes engravatados, lembrando – e olha que somente lembrando mesmo! – daquela sensação antiga, de quando eu era um deles: cidadão, gente, pessoa, um humano. Vagando em farrapos no corpo e na cara a máscara da vergonha estampada, o orgulho que me enchia quando tinha sucesso virou humilhação em ver esses homens executivos todos ocupados com suas maletas, telefones e toda aquela parafernália dessa canalha toda; os que “deram certo” na vida, afetando muita ocupação e comprometimento com o trabalho de merda.

         Bah! Corja de tratantes! Apesar de eu ter usado gravata, tendo inclusive uma coleção de todos os tipos – tinha uma até com a Marlin Morrow estampada –, hoje tenho medo do poder que elas exercem, sempre oprimindo os mais fracos, fazendo de tudo uma oportunidade de crescer, oprimir, mandar, executar. Minha vontade é pegar um filho da puta desses, voar no seu pescoço e estrangulá-lo puxando o nó da gravata, para ele sentir bem na sua garganta a opressão que essa porra exerce nas costas dos menos favorecidos. Aí depois, quando ele estiver prestes a morrer, eu digo bem alto:

         –– Aí seu pinto-mucho! Trabalhou a vida toda feito um tonto para ganhar dinheiro, bateu tanta punheta em frente ao seu notebook vendo site pornô porque você não tinha mulher para foder, sempre acreditou nos preceitos da sociedade, que hoje vai morrer sem tudo aquilo que sonhou: amor, poder e sucesso.

         E sou capaz até de ver a língua do cidadão estirada toda para fora, chegando até os peitos, os olhos esbugalhados, as veias quase explodindo numa ultima tentativa besta de oxigenar o seu cérebro vazio. Melhor ainda: queria pegar uma navalha bem afiada de barbeiro, aquelas alemãs mesmo, levar até os seus olhos e ver o reflexo do medo no fio de corte, e assim talhar a bochecha do boiola de fora a fora, mostrado todos aqueles dentes brancos que só conhecem o gosto do puro uísque 12 anos e que vão conhecer o gosto de sangue quente, num sorriso de caveira vermelha. E cortaria até se desprender o maxilar desse morfético, sem se preocupar com seus gritos. Aí eu me sentiria bem, como nunca me senti nesses anos todos.

         E estaria provado que o oprimido se souber pensar também consegue oprimir, e pior ainda, pois desce até o degrau da bestialidade humana. O mundo seria um lugar melhor de se viver se todos os que levam no cu por causa dos ricos fossem lá e pegassem o que é de direito deles, porque cresceram às custas deles. Nem que isso acarretasse derramamento de sangue, o que seria algo bom, pois a Terra está precisando ser irrigada e limpada do lixo que nela existe.

         Mas isso fica só na vontade, porque quando me vem esses pensamentos justos que me causam tanto gozo, geralmente perco meu olhar de cão sarnento cheio de ferida na perna que a sociedade me obriga a ter para ganhar esmola das beatas ou pessoas de bom coração – tão raras hoje em dia – e me deparo com o medo nas faces jovens e cinzas deles, devido à raspagem feroz do barbeador.

         E comparo-os comigo: eu passo a mão na minha cara e sinto essa barba toda grossa, suja, fedida e horrível em mim. Sinto nojo de mim mesmo. Não devo tomar banho há uns dois anos. Sou um bicho em meio à selva de concreto, sinto-me um bicho querendo sobreviver apenas; e assim vai-se pingando mais gotas de amargura em minha alma já envenenada pelo capitalismo e esquecida pelas instituições corruptas e o Estado Paterno que existia e que não pode mais gastar dinheiro com os que “não deram certo” – mas que gasta dinheiro com a Polícia para manter quietos aqueles que tentam vencer de maneira errada, através do crime, sendo que seria melhor ajudá-los.

         Logo esqueço de tudo; a fome aumenta. Mais peso em cima de mim. Ao contrário da minha classe a qual eu pertenço, não sou viciado em pinga, muito menos em cocaína ou fumo, então saio procurando nas latas de lixo o que os outros me deixam. Às vezes chego até me bater com meus colegas e com os cães sarnentos que lá estão também, todos procurando um pedaço de osso para roer na rua cinza da amargura, enquanto a tristeza ácida vai corroendo lentamente e nossas almas e tomando conta de nossos semblantes. Alma? Eu pensei alma? Nem devo ter alma mais, porque talvez até Deus tenha esquecido de mim.

         Está meio frio; chovera muito ultimamente aqui na cidade, e agora tinha um vento muito gélido cortando a minha pele feito chibatadas. Na sarjeta olhando esse ambiente hostil de concreto, ferro e fumaça, sem sentimento de caridade e sem cor nenhuma, numa massa disforme de realidade imperceptível, tudo me parece fugir, deixando-me cada vez mais desamparado. A fome voltara. Três dias sem nada para comer e meu estômago parece se comprimir, mas aumentando cada vez mais de volume nessa fome crescente.

         Saio pedindo esmola para todo mundo, principalmente para as pessoas de Rolèx no pulso, bolsas da Bottero e pulseiras de ouro 18 quilates.

         –– Por favor, uma esmola para comprar pão!

         –– Desculpa, não tenho.

         –– Muito obrigado!

         E a pessoa saía aliviada por ter se livrado da minha imagem repugnante. No semáforo abordava os Hondas, Audis, Mitsubishis, Subarus, Renauts, Toyotas e…

         –– Por favor, um dinheiro para eu me alimentar…

         –– Não tenho, sai sem carteira.

         E a pessoa fechava o vidro do carro, ouvindo musicas clássicas como Bethoven e Mozart. Ou quando não muito, os vidros sempre se fechavam no semáforo, devido aos assaltos. Mas que adianta? Estão quebrando os vidros a pedradas. Acho que eu devia fazer o mesmo.

         É… Hoje vou ficar sem pão, terei de comer do lixo mais uma vez.

         Num apartamento bem vistoso, remexo o lixo com o porteiro reclamando. Estou nem aí para ele, quero que ele vá se foder de verde, amarelo, azul e com uma faixa branca ainda.

         Latas de refrigerante, papel higiênico com bosta, coisas podres, restos de comida, palmtop estourado, videogame, revistas Playboy, um 38 com o tambor cheio, um pedaço de pão embolorado com maionese estragada… Opa! Como o pão quase vomitando e pego esse 38 muito discretamente. Ponho-o dentro da cueca e saio, escutando que “da próxima vez isso aí vai dar B.O seu vagabundo”. Vai para a puta que te pariu, seu mane! Você não manda nada nessa merda e quer cantar de galo, não sabe a vontade que eu tenho de trabalhar!

         Não muito longe dali, eu estava atrás duma lixeira, numa travessa onde freqüenta gente duvidosa, o câncer da sociedade existe ali. O revólver estava intacto, e uma bala apenas havia sido usada.

         Aquilo era um presente de Deus! Não! Não devo roubar! Nem matar! Mas por que eu não faria isso sendo que ninguém chora ou se importa comigo? Mas é errado! E daí? Estão me matando da pior maneira possível, de inanição, de frio, de desamparo, de tristeza e desgosto… Mas é errado! Foda-se! Agora eu quero ver quem não vai me respeitar! Que se exploda tudo.

         Volto a caminhar pelas ruas entre as pessoas boas e bem vistas aos olhos de todos e de Deus. Aquela arma me fazia sorrir entre elas, que me olhavam com descaso por ver um desgraçado feliz. No mínimo se perguntavam o que um fodido como eu devia ter para se alegrar. Ah! Eu não tenho nada, mas logo vou ter.

         Procurei uma loja bem vistosa, onde vendia somente coisas para ricos, pançudos, madames vadias da socialite, que gastavam fortunas com analistas para se tratarem da sua vida problemática que já tem tudo.

         Entrei e não me barraram, mas um vendedor ficou me seguindo, olhando-me de soslaio, curioso por ver um verme como eu se rastejando na merda em meio de senhoras e empresários. Todos me olhavam com nojo e medo nos olhos, querendo logo se livrar dessa criatura que os incomodavam feito fezes de cachorro impregnadas no sapato importado. Andei aleatoriamente pela loja, e logo o atendente que me seguia feito sombra, muito bonito e elegante disse:

         –– Senhor, o senhor não pode ficar aqui.

         –– Ah… Me desculpe então, mas onde está o direito de ir e vim? Ora, se está a loja aberta ao público, eu também posso andar aqui e ver as mercadorias, não posso?

         –– Não senhor, o senhor não pode. Não era para estar aqui.

         –– Ah… Me desculpe de novo também, que mancada a minha.

         –– Queria se retirar senhor, por favor.

         –– Um minutinho… Acho que sei porque não posso ficar aqui…

         –– Que bom senhor, agora, por favor, faça a gentileza.

         O canalha queria é me pegar pelo colarinho e me por a chutes para fora, como um cão de rua que eu era. Queria profundamente mesmo que ele fizesse isso, assim eu enchia aquela barriga definida com bomba de tiros só para ver o sangue jorrar desse corpinho bonito. Minhas mãos tremiam, e eu suava muito com medo de fazer alguma coisa. Fiquei absorto olhando as pessoas que estavam olhando a cena, já se sentindo aliviadas devido ao incomodo causado. Não escutava mais nada, fiquei lembrando do meu tempo quando eu era tratado como gente, e não como um lixo! Aposto que eu serei piada na roda deles hoje enquanto toma champanha, comem caviar e fumam charutos. Escutei apenas:

         –– Senhor? – e tocou o meu ombro.

         Não respondi. Olhei para ele e gritei com toda minha força:

         –– Hoje eu vou virar gente porra! Cansei de ser tratado como um animal e visto como um ser repugnante e esquecido como um monte de lixo sem utilidade nenhuma!… – Senhor, acalme-se! – Não vou me acalmar! Tão devendo muita coisa, principalmente dignidade! E vão me pagar agora, seus ricos lazarentos, bando de filho-da-puta!

         E já vinham mais atendentes para resolver a situação. As senhoras do local estavam abismadas, e o senhores todos com medo.

         Quando chegaram mais três rapazes para ver o que estava acontecendo, saquei o 38 e baleei o cara da minha frente e aqueles que estavam vindo perto de mim. Descarreguei o tambor do revólver, sobrando duas balas.

         –– Quem se mexer aqui nessa buceta eu mato!

         Então fui tranquilamente pegar um terno decente. Depois fechei a loja. Cortei minha barba, pus perfume chique e calcei sapatos de polimento. Vendo-me no espelho assim, parecia gente. Quem estava na loja, já começava a cochichar. Uma mulher teve a ousadia de dizer que eu era um monstro, e que devia morrer. O sangue subiu na minha cabeça. Fui a passos calmos na seção de rifle para caça, e carreguei um. Cheguei para junto dela e disse:

         –– Mesmo? Monstro é o mundo em que vivemos! Mundo que vocês ricos governam a vida dos desgraçados e fodidos como eu! Um mundo capitalista que reduz tudo a moeda! Um mundo idiota que faz um jogador – veja bem! – um jogador ganhar mais que um médico, um político deitar e rolar no poder, que faz dos agricultores que alimentam todos vocês passarem fome… Quem que é monstro?

         Ela estava com medo e chorava já. Aposto que já mijou nas calças. Eu disse bem alto para todos ouvirem, que chegou até voar cuspe na cara dela:

         –– É bom né ter a vida dos outros na mão… – e apontei para a cabeça dela. Um “Oh!” foi ouvido em coro automático. Então peguei e puxei o gatilho, matando-a. Um jato de sangue saiu do buraco de minha que a bala fizera. Depois mandei todos fazerem uma fila. Deu cerca de vinte pessoas. Eu tinha tempo de sobra até a polícia chegar, já que nesse país ninguém se preocupa com ninguém. Carreguei mais um rifle, e fui matando um por, aliviando meu coração, dizendo:

         –– Esse é por eu ter passado fome, frio, medo, privações, doenças, preconceito, discriminação, abandono, injustiças, descaso…

         Matei todos que estava na loja, até as crianças. Quebrei tudo à minha volta, numa fúria de animal enraivecido. Nesse momento eu me sentia bem melhor, como se minha alma voltasse ao meu corpo novamente, e um peso tivesse sido tirado de mim. Havia sangue a maça encefálica para todos os lugares, e já se pisava em poças pelo chão. Abri a porta da loja, e sai andando na rua, com as pessoas olhando com admiração para mim.

         Não serei piada de ninguém: agora eu sou um cidadão tão bom quanto eles ali que descansam de sua dura vida.

Quinta-feira, 16 de Julho de 2009,

Pirralho

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