História

O último céu azul

“O Último Céu Azul”
Ano 3256. O mundo não é mais como conhecemos. A civilização, como um dia foi, virou pó sob os ventos da ganância, guerras intermináveis e o colapso da natureza. Poucos sobreviveram. Entre eles, um senhor de 84 anos, chamado Eron, que vive em uma humilde vila com um pequeno grupo de sobreviventes. Ali, sem tecnologia, conforto ou segurança, ele se senta com seus netos sob o céu cinzento e conta as histórias que ouviu dos pais e avós. Histórias de um tempo em que existia comida, carros, rios azuis e esperança.

Mas também conta como o mundo caiu. Como os homens cavaram o próprio fim, buscando poder a qualquer custo.
Essa é uma história que atravessa milênios, dores e sonhos.
Uma lembrança do passado para salvar o que resta do futuro.


📖 CAPÍTULO 1: A Última Casa da Estrada de Ferro

O último céu azul 1

O vento cortava o silêncio como lâminas invisíveis, levantando poeira marrom sobre a terra rachada. Ao longe, a carcaça de um antigo trem enferrujado repousava sobre trilhos quebrados — um símbolo de uma era que ninguém mais conhecia. No fim daquela estrada esquecida, cercada por árvores mortas e postes caídos, havia uma casa. Pequena. Feita de placas reaproveitadas e barro endurecido.

Ali morava Eron, um senhor de 84 anos, com olhos fundos e pele marcada pelo tempo e pelo sofrimento. Sua barba branca parecia feita de cinza, e sua voz — quando não estava em silêncio — soava como trovões distantes em noites de tempestade.

Naquela tarde, ele estava sentado na frente da casa, cercado por três crianças — seus netos. O mais velho, Tarek, de 11 anos, adorava ouvir as histórias do avô. Já a pequena Lya, de 6, segurava um boneco feito de madeira e tecido sujo, enquanto Noah, o do meio, apenas ouvia com os olhos arregalados.

Eron pigarreou. Cuspiu um pouco de poeira e disse:

Cês sabiam… que já existiu um tempo em que as pessoas comiam fruta direto da árvore? Que os rios eram azuis? Que existia algo chamado… chocolate?

As crianças se entreolharam, confusas. “Chocolate” era apenas um som sem significado.

Meus pais contaram… que no ano 2025, o mundo ainda era bom… Ou pelo menos, parecia ser. Tinha cidades cheias de luz, carros que voavam baixo, comida pronta em segundos, músicas, filmes… e paz. Ou quase isso. Porque dentro do coração das pessoas… já morava a granácia. — Eron sempre dizia “granácia”, numa mistura de ganância e desgraça.

Ele olhou pro céu, onde nuvens espessas e negras escondiam o que um dia foi azul. E prosseguiu:

O povo queria mais. Os políticos queriam mais. Os ricos… sempre mais. Enquanto isso, o povo de verdade… só queria viver. Mas viver ficou caro. Difícil. E… mortal.


📖 CAPÍTULO 2: A Queda dos Gigantes

O último céu azul 2

Eron fechou os olhos por um instante. Parecia que cada palavra trazia à tona não só lembranças que ele nunca viveu, mas que herdou nos ossos, no sangue, na alma.

Naquele tempo, o mundo tinha gigantes… — começou ele. — Não gigantes de carne e osso, mas países. Nações inteiras que se achavam deuses, com poder suficiente pra apagar cidades com o apertar de um botão. Estados Unidos. Rússia. China. Europa. Cada um queria ser o dono do mundo. Cada um queria mandar no planeta. Mas nenhum queria dividir o brinquedo.

As crianças escutavam com a atenção que só o fim do mundo é capaz de conquistar.

Enquanto brigavam por mais terra, mais dinheiro, mais poder… as cidades começaram a gritar. As montanhas choraram, os oceanos subiram… A natureza se cansou. Tempestades sem fim caíam sobre o Norte. O Sul ardia em chamas. Cidades sumiam do mapa em minutos. E ninguém fazia nada. Só continuavam querendo mais. Como formigas brigando por um pedaço de açúcar num formigueiro em chamas.

Ele apontou para um ponto no horizonte, onde só se via deserto.

Ali já foi uma cidade grande. Muito grande. Prédios que tocavam o céu. Metrôs que corriam debaixo da terra. Agora… nem o nome dela restou. Sumiu. Engolida pela própria arrogância.

Tarek, o mais velho, perguntou:

Vovô… ninguém tentou impedir?

Eron suspirou. Longo. Doído.

Alguns tentaram. Mas foram silenciados. Outros só assistiram de braços cruzados. E os piores… ajudaram. Roubaram o que podiam. Traíram uns aos outros. E quando as bombas começaram a cair, o povo correu… mas já era tarde.

Ele olhou para as mãos. Tremiam um pouco. Era difícil contar uma história que cheira a fumaça mesmo depois de mil anos.

Não foi uma explosão só. Foram muitas. Gente invadindo país vizinho. Guerra entre civis e governo. Guerra entre os governos. O mundo virou um tabuleiro de xadrez… mas as peças não sabiam mais as regras.

Lya, com sua voz doce, perguntou:

E você, vovô, já viu o céu azul?

Eron sorriu triste.

Não, pequena. Nunca. Mas ouvi dizer que era lindo. Lindo demais. Um mar virado ao contrário. Um espelho da esperança. E é por isso que eu conto tudo isso pra vocês… porque enquanto vocês souberem que existiu um céu azul… ainda existe uma chance de ele voltar.


📖 CAPÍTULO 3: As Cidades Esquecidas

O último céu azul 3

O silêncio entre o avô e os netos parecia maior do que o mundo. Até o vento havia parado, como se quisesse ouvir também. Eron coçou o queixo, pensativo, e continuou:

Depois que as grandes bombas caíram… o mundo não quebrou só em pedaços — ele se partiu em medo. Medo de respirar. Medo de beber água. Medo de confiar. As cidades foram sendo abandonadas. Uma por uma. Viraram fantasmas de concreto, com postes tortos, janelas quebradas e cheiro de mofo químico.

Ele olhou para Noah, o neto do meio, que mordia os lábios.

Você sabia, garoto, que antes as cidades tinham luzes? Tudo brilhava! Tinha música nas ruas. Gente vendendo comida. Criança rindo…

Noah interrompeu:

E por que tudo acabou, vô? Por que ninguém ajudou?

Porque…, Eron disse com amargura, …as pessoas começaram a achar que estavam lutando contra inimigos, quando na verdade estavam lutando contra o próprio reflexo. O problema nunca foi o outro país. Foi o espelho que ninguém queria encarar.

Ele se levantou devagar, como se cada osso fosse de vidro. Entrou na casa por um instante e voltou com algo enrolado num pano sujo.

Aqui… vejam isso.

Abriu o pano com cuidado. Dentro, havia um pedaço quebrado de vidro. Mas não era um espelho comum. Era parte de uma antiga tela — talvez de um monitor, ou de um velho aparelho eletrônico do passado.

Encontrei isso anos atrás numa cidade morta chamada “Nivalis”. Um nome que ninguém lembra. Tava no meio dos escombros de um prédio chamado “Hospital Geral”. Lá, o chão era coberto de máscaras derretidas e bonecas sem cabeça. A chuva… tinha cheiro de morte.

As crianças se aproximaram para tocar o vidro. Eron o puxou de volta.

Não toquem. Esse pedaço ainda pode carregar o veneno da guerra. Tem cidades inteiras onde ninguém pode pisar. Onde o solo brilha à noite. Onde as árvores não crescem. Onde os rios… fedem como feridas abertas.

Ele fechou o pano com firmeza.

A ganância foi um incêndio. Começou pequena, mas se alimentou de tudo: das florestas, dos mares, dos homens. E agora… só restam cinzas e histórias.

As crianças ficaram em silêncio. Era como se o mundo tivesse ficado ainda mais pesado após aquelas palavras. Mas Eron sabia: o fardo da verdade precisava ser passado adiante. Se não pelas palavras, então pela dor da lembrança.

Por isso, filhos… eu conto. Pra que vocês saibam. Pra que nunca repitam.


📖 CAPÍTULO 4: A Fome que Andava nas Sombras

O último céu azul 4

O céu, mesmo coberto de nuvens escuras e pesadas, parecia tremer ao som da memória.

Eron puxou o ar devagar. Parecia que cada lembrança exigia força para sair. Ele olhou para o chão, como se lá estivessem enterrados todos os rostos que um dia conheceu.

Quando eu era criança…, começou, a fome era uma coisa viva. Não era só o estômago vazio. Era como uma sombra que seguia a gente. Entrava na nossa casa, deitava no canto, e esperava a hora de levar alguém embora.

As crianças se encolheram. Não de medo, mas de respeito. Era como se estivessem diante de algo sagrado — uma dor ancestral que não deveria ser interrompida.

Eu vi minha mãe raspar a última farinha de um saco que herdamos de um velho acampamento. Era tudo o que tínhamos. Misturava com um pouco de água barrenta e fazia bolinhos duros como pedra. A gente comia rindo… fingia que era festim. Mas o silêncio que vinha depois da risada era o mais alto que já ouvi na vida.

Ele fitou Lya, que estava com os olhos marejados.

Teve uma noite… em que escutamos passos lá fora. Eu tinha uns 9 ou 10 anos. Não sabíamos se era gente… ou pior: um dos grupos errantes. Nessa época, não existiam mais leis. Só o mais forte. Os que tinham armas roubavam dos que tinham comida. E quem não tinha nada… tomava a vida dos outros só por raiva.

Eron fechou os olhos por um momento. Como se revivesse a cena.

Minha mãe me escondeu debaixo do assoalho. Fiquei lá, tremendo, com a mão dela segurando a minha pela fresta. Ouvi vozes. Barulhos. Um disparo. E depois… silêncio. Quando saí debaixo da tábua… ela já não estava mais lá.

As crianças seguraram o fôlego. Nem os pássaros se atreveram a cantar.

Daquele dia em diante, eu corri. Andei por desertos. Dormi em ruínas. Comi casca de árvore e rato assado. Conheci gente boa. Conheci monstros. E vi muitos virarem os dois, dependendo da fome.

Ele sorriu fraco.

E mesmo assim… sobrevivi. Não sei se por sorte ou castigo. Mas aprendi que a fome ensina. Ensina a amar cada migalha. Ensina a respeitar a terra. E principalmente… ensina a nunca esquecer.

Eron estalou os dedos, chamando as crianças para dentro.

Vamos, o vento vai mudar. E com ele, vem a noite. E a noite… nunca é só escura por aqui.

As crianças se levantaram. Mas antes de entrar, Noah perguntou:

Você ainda sente fome, vô?

Eron olhou o horizonte deserto, o chão rachado e a terra morta.

Todos os dias, meu filho. Mas não é mais no estômago. É no coração. Fome de ver o mundo voltar a sorrir.


📖 CAPÍTULO 5: A Última Esperança

O último céu azul 5

Naquela noite, a casa de barro e madeira quase se desfez com o vento. As cortinas feitas de trapos dançavam como espectros, e o frio entrava pelas frestas como um ladrão silencioso. Mas dentro da pequena sala, iluminada por uma chama fraca, o calor vinha das palavras de Eron.

Nem tudo acabou de uma vez, disse ele, mexendo em um velho rádio quebrado que ele insistia em consertar desde que os netos nasceram. Existem histórias… sussurros que o vento ainda carrega. Histórias de um lugar que sobreviveu. Uma cidade escondida. Onde o céu ainda é azul, e a água canta quando escorre pelas pedras.

Isso é real, vô? — perguntou Lya, com os olhos brilhando.

Eron não respondeu de imediato. Levantou-se com dificuldade e abriu uma caixa de madeira trancada por um fecho de metal enferrujado. Lá dentro, havia um mapa — feito à mão, com traços que pareciam ter sido desenhados com carvão.

Meu pai deixou isso pra mim antes de desaparecer. Ele dizia que ouviu pelo rádio, muitos anos atrás, um sinal vindo de uma estação distante. Falava de um vale intocado, onde as bombas não chegaram. Onde a terra ainda dá frutos. Onde há cura para os rios. Um lugar chamado… Aeralis.

As crianças se entreolharam, como se esse nome tivesse acendido algo nos seus corações.

Mas por que ninguém nunca achou esse lugar, vô?

Porque Aeralis se esconde. Não está no mapa de ninguém, só no coração de quem ainda acredita. Muitos tentaram. Muitos morreram no caminho. Mas meu pai dizia que só quem não carrega ódio ou ganância pode encontrá-la. Porque ela não é só um lugar… é um teste.

Noah franziu a testa:

Teste? Como assim?

Aeralis é como um espelho do mundo antigo. Ela sabe reconhecer quem ainda quer consertar as coisas, e não repetir os erros do passado.

Eron passou os dedos pelo mapa, como se buscasse coragem.

Por isso eu guardo esse pedaço de papel como se fosse ouro. Não porque me dá certeza… mas porque me dá motivo. Um motivo pra levantar. Pra ensinar vocês. Pra contar essas histórias. Porque, se esse lugar existir mesmo, alguém vai precisar estar pronto pra chegar até lá.

Os netos se aproximaram, tocando o mapa com cuidado, como se ele fosse feito de esperança sólida.

Vocês são a última geração que pode fazer diferente. A última chance que o mundo tem de florescer de novo.

Lá fora, o vento finalmente cessou.

E, pela primeira vez em dias, uma estrela solitária atravessou o céu escuro — como se dissesse, baixinho:

Aeralis existe. Mas só para quem ainda sonha.


📖 CAPÍTULO 6: O Último Sinal de Vida

O último céu azul 6

A casa dormia. O mundo lá fora também. Mas o velho rádio — aquele mesmo que nunca funcionava, que Eron teimava em mexer mesmo com peças faltando — ele… acordou.

Era pouco depois da meia-noite quando um chiado cortou o silêncio como uma faca. No começo, parecia apenas mais um sopro do vento. Mas então veio um estalo. Depois, um som metálico, como se alguém tossisse do outro lado do tempo.

Eron, desperto num pulo, se aproximou com o coração acelerado. O rádio brilhava com uma luz tênue. Uma frequência pulsava — 113.42 — um número que ele não via há décadas.

Não pode ser…, murmurou.

Ele girou o botão de sintonização com dedos trêmulos. Mais chiados. Um estouro. E então…

— “…Aeralis… cópia… alguém… código Mistral… viva… repetindo… estamos vivos… coordenadas…”

E então, silêncio.

Eron ficou ali, parado. Suando frio. A voz parecia real. Humana. Mas podia ser um erro, um eco do passado, um reflexo radioativo de algo que já morreu há séculos.

Foi real? — sussurrou para si mesmo. — Ou será que a solidão tá começando a falar comigo?

Mas antes que pudesse se convencer de qualquer coisa, uma das crianças apareceu.

Vô…? Você tá bem? Eu ouvi alguma coisa… era no rádio?

Ele se virou devagar. Algo mudou em seus olhos. Não era só espanto — era a faísca da decisão.

Acho… que alguém está chamando por nós. E se for verdade… se for mesmo Aeralis… então não temos escolha.

Você vai… procurar? — Noah perguntou, de olhos arregalados.

Eron olhou o mapa, ainda aberto na mesa. O traçado dele agora parecia se alinhar com o número que ele ouviu. A coincidência era absurda demais para ser só isso.

Não…, respondeu ele com um pequeno sorriso. — Nós vamos procurar. Todos nós.

O silêncio voltou à casa. Mas dessa vez, ele parecia mais leve. Como se segurasse o fôlego, esperando pela próxima batida da aventura.

Lá fora, o mundo ainda era ruína.

Mas agora, havia um som no ar…
Um som que não vinha do rádio.
Vinha de dentro.

Esperança.


📖 CAPÍTULO 7: O Caminho de Cinzas

O último céu azul 7

Do alto da colina, antes de o sol surgir, Eron olhou uma última vez para o que chamava de lar.

Não era muito. Apenas uma vila feita de restos: metal torto, barracos, pedaços de concreto empilhados com mais fé do que engenharia. Mas ali havia lembranças, amigos, a sombra daquilo que um dia se chamou de “comunidade”.

Se tudo der errado… — disse em voz baixa — ao menos tentei algo antes do fim.

Ao lado dele, Lya ajustava a mochila costurada com tecido de guarda-chuva velho. Noah carregava o mapa como se fosse um talismã sagrado. Atrás deles, cinco pessoas da vila decidiram ir junto — entre elas, Doran, um homem calado que já perdera tudo, e Maela, a única que ainda lembrava de como purificar água com carvão e areia.

Todos sabiam o risco. Ninguém falou sobre isso.

Seguiram a direção marcada no mapa. Norte. Sempre ao norte. A trilha levava por um mar de cinzas — o que restava de uma antiga cidade chamada Ribeira do Sol, hoje só um campo plano onde nem o eco sobrevivia.

O chão era seco, rachado. Havia restos de postes tortos, placas derretidas, brinquedos infantis meio enterrados na poeira. Mas o que mais assustava… eram os olhos.

Olhos escondidos nas sombras.

Eles nos observam, sussurrou Doran. — Os famintos.

Eron assentiu. Sabia. Os famintos não eram monstros… eram humanos que perderam tudo, inclusive a alma. Viviam nas ruínas como espectros, caçando qualquer um que ainda tivesse algo. Roubar, matar, devorar — não importava.

Por isso, o grupo andava em silêncio. Só à noite paravam, e mesmo assim, sem fogueiras.

No terceiro dia, Maela avistou algo no horizonte. Uma torre. Enferrujada, torta… mas ainda de pé.

Antigo posto de observação, disse Eron. — Talvez… ainda tenha energia.

Entraram no lugar com cautela. Subiram a escada enferrujada até o topo. Eron levou o rádio. Ligou.

Nada.

Mais uma vez.

Chiado.

Mais uma tentativa.

— “Código Mistral… Se ainda há alguém… sigam a luz dos três picos. Vocês estão perto…”

A transmissão cortou abruptamente. Mas agora era certo. Aeralis existia.

Noah correu até a borda da torre e apontou ao longe.

Lá! Três montanhas alinhadas!

Todos olharam. No horizonte acinzentado, três picos rasgavam o céu — como garras apontando para algo maior. Era longe. Mas não inalcançável.

Eron respirou fundo. O vento bateu forte, levantando a poeira ao redor. Eles estavam cercados de ruínas, de perigo, de um mundo morto.

Mas agora, sabiam para onde ir.

E então, pela primeira vez em décadas…

Eles começaram a correr.


📖 CAPÍTULO 8: A Cidade dos Ossos

O ar mudou.

Era como respirar através de um pano sujo, pesado, com gosto de ferrugem e fim. O grupo, cansado, cruzava um vale onde o silêncio era tão espesso que até os pensamentos pareciam cochichar. A paisagem deixava de ser apenas destruída — ela era maldita.

Doran parou de repente. Olhava fixamente para o que havia diante deles.

Chegamos…, disse em voz baixa.

Era ela.

A cidade morta.

A antiga capital.

Seu nome fora apagado da história. Restava apenas um apelido sussurrado por sobreviventes: A Cidade dos Ossos. E não era metáfora.

As ruas estavam cobertas de crânios e costelas, amontoadas como se a própria terra tivesse vomitado os mortos. Edifícios desmoronados pareciam mastros de um navio naufragado no deserto. Árvores cresciam torcidas, alimentadas por resíduos químicos, folhas negras como carvão.

Eron apertou o lenço no rosto. Noah cobria os olhos, tremendo.

Vamos rápido. Sem fazer barulho. E ninguém se separe.
O que tem aqui, vô…?
Sombras que esquecem de dormir, respondeu, enigmático.

Eles seguiram por uma antiga avenida, desviando de esqueletos, passando por carros corroídos, vitrines de lojas congeladas no tempo. Um manequim de vestido de noiva os encarava de dentro de uma loja. Estava inteiro. Limpo. Intacto.

Isso… não é normal, disse Maela, recuando.

Foi então que ouviram: um sussurro. Depois outro. Vozes finas, infantis. Rindo.

Lya olhou ao redor, mas não havia ninguém.

Vamos sair daqui!

Correram. Viraram em becos, subiram escadas tortas. As vozes vinham de todo lado agora.

Vão embora…
Eles ainda vivem aqui…
Vocês não pertencem…

Até que, sem aviso, viram luzes.

Fogueiras. Muitas. Cercando um prédio antigo — talvez uma prefeitura, talvez um templo — agora pintado com símbolos tribais, caveiras, mãos ensanguentadas.

Um grupo de pessoas os observava. Roupas rasgadas. Máscaras feitas de pedaços de bonecas e cascos de animais. Armas improvisadas. Olhares sem tempo.

Um deles, mais alto, sem máscara, falou.

Vocês vieram buscar Aeralis?
Sim…, disse Eron, firme.
Então terão que passar pela provação. Só os que enfrentam seus próprios pecados podem atravessar este solo e continuar vivos.

Silêncio.

E se recusarmos? — perguntou Doran, já empunhando o facão.

O líder sorriu. Um sorriso frio, quase gentil.

Então se tornam parte da cidade. Como todos os outros.

Atrás dele, uma parede se iluminava… com milhares de nomes riscados. Alguns, ainda recentes.

Eron deu um passo à frente. Ele sabia que não era mais uma jornada. Era um julgamento.

E que talvez… o mundo só pertencia aos que encaravam seus próprios fantasmas.


📖 CAPÍTULO 9: A Provação das Sombras

A noite caiu como um manto de chumbo sobre a Cidade dos Ossos. O grupo estava reunido no centro do antigo templo, cercado pelos moradores mascarados, chamados de Guardas do Véu. O líder, chamado apenas de O Vigia, acendeu quatro tochas, uma para cada direção do vento.

Cada um de vocês enfrentará sua sombra.
Não é uma luta física… mas se perderem, não voltam.

Eron encarou os olhos fundos do Vigia. Não sabia se era loucura, tradição ou alguma ciência esquecida… mas sabia que aquilo era real.

Os primeiros a entrar foram Noah, Maela e Lya. Cada um levado a uma sala diferente. Depois Doran. Depois Eron.

A porta se fechou atrás dele com um baque seco.

Dentro, só escuridão.

Eu não tenho medo de você, murmurou Eron. Mas então, a escuridão respondeu.

Mas deveria.

Uma figura se formou diante dele. Um reflexo. Um ele mesmo, mais jovem, sujo, com olhos frios. O Eron que abandonou amigos para salvar a própria pele. O que roubou comida de uma criança faminta. O que viu a esposa morrer sem conseguir ajudar.

Você fala de esperança. Mas já foi pior do que os famintos, disse o reflexo.

Eu… mudei.
Você esconde. Não muda. Só esquece.

A sala começou a girar. Gritos surgiram das paredes. Imagens da guerra. Do céu vermelho. De corpos queimando. De mãos pedindo socorro.

Eron caiu de joelhos. Chorou.

O mundo… o mundo era cruel. Eu só sobrevivi.

E agora quer salvar os outros? Você nem salvou a si mesmo.

Silêncio.

Eron levantou o rosto, os olhos cheios de dor.

Eu sobrevivi… e isso me dá o direito de tentar. Errar… não me torna incapaz. Me torna humano.

A sombra parou. Sorriu. E lentamente… desapareceu.

A porta se abriu. Eron caiu para fora da sala, ofegante.

Um a um, os outros voltaram também. Maela estava em prantos. Doran tremia. Lya abraçava Noah, que parecia ter visto o próprio fim.

Mas todos haviam vencido.

O Vigia os encarou. Não disse nada. Apenas apontou para o norte.

Aeralis é real. Mas não é um lugar. É uma escolha. Uma construção. Vocês têm a chama. Agora, acendam o que resta.

Eron assentiu. O grupo respirou fundo.

E então seguiram.

Agora… mais leves. Mais certos.

Mais perigosos.

Pois quem enfrenta a própria sombra, pode iluminar qualquer escuridão.


📖 CAPÍTULO 10: Os Três Picos e o Horizonte Azul

Após dias atravessando desertos enferrujados e florestas de concreto morto, o grupo avistou, enfim, os Três Picos — três montanhas negras que cortavam o céu como dedos de pedra apontando para o passado.

Diziam que além delas estava Aeralis. Ou o que restava.

O ar era diferente ali. Mais frio. Como se o tempo sussurrasse que algo importante estava prestes a acontecer.

Doran subiu na rocha mais alta e apontou.

Ali…!

Entre os picos, havia uma fenda. Uma luz tênue escapava dela. Não era fogo. Nem lanterna. Era algo… natural. Como se o céu azul, que havia desaparecido séculos antes, estivesse escondido ali dentro.

Eron sentiu os olhos marejarem.

Será possível?

O grupo desceu com cuidado, enfrentando encostas escorregadias e sons estranhos vindos da profundidade. Vozes antigas pareciam ecoar das paredes. Lembranças fossilizadas.

Ao atravessar a fenda, encontraram algo inacreditável:

Um vale escondido.

Com vegetação viva.

Água clara.

E céu. Um pequeno pedaço de céu azul — real.

O grupo ficou em silêncio. O tempo parou.

Aeralis…, sussurrou Maela.

Mas a beleza escondia uma verdade ainda mais surpreendente: havia construções ali. Tecnologia antiga preservada. Torres solares. Estufas automatizadas. Um reator de energia limpa ainda funcionando.

E, ao centro, um terminal.

Funcionando.

Na tela, uma mensagem piscava:

PROJETO AERALIS – PROTEÇÃO DE EMERGÊNCIA ATIVADA

Último acesso registrado: 12 de novembro de 2089.

Status: Conexão com rede global falhou. Autonomia de 266 anos restantes.

Eron tocou a tela.

Imagens se acenderam.

A história verdadeira de Aeralis apareceu: era um projeto secreto criado por cientistas, artistas e engenheiros que sabiam que o mundo estava prestes a cair. Eles haviam deixado esse lugar escondido — não como um refúgio para si, mas como uma mensagem para o futuro.

Não salvem o passado. Aprendam com ele.

O grupo entendeu. Aeralis não era uma salvação mágica. Era um ponto de recomeço. Um lembrete de que, mesmo na destruição total, a esperança é algo que precisa ser plantada e cultivada.

Doran chorava. Lya sorria. Noah correu até a grama como se pisasse em nuvens.

E Eron? Ele se ajoelhou. Pegou um punhado de terra viva entre os dedos.

Eu prometo. Vamos cuidar disso. Vamos recomeçar.

O céu, mesmo pequeno, brilhava com força.

Talvez aquele velho senhor de 84 anos, contando suas memórias para os netos em 3256… tivesse vivido o início da reconstrução. Talvez aquela lembrança, passada de geração em geração, fosse o verdadeiro milagre.

O sonho de um novo mundo.

Um mundo que ele viu nascer… mas nunca viu florescer.

Ainda.

Tediado no YouTube
Se inscrever
Notificar de
guest
0 Comentários
Comentários em linha
Exibir todos os comentários