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Crônica natalina

Crônica natalina 1
 

      Há uma historieta interessante que paira de boca em boca numa fantástica cidade chamada Dois Córregos. Quem me contou foi um amigo do amigo de um amigo do amigo meu, que era amigo de outro amigo do amigo dele. Ela navega quase na velocidade da luz, em um eficiente sistema de comunicação rápida, quase instantânea, com uma distorção dos fatos medonha, de tamanha eficiência – não podendo dizer o mesmo para o conhecimento. O natal vem chegando, e se trata disso mesmo, dessa nobre data vazia do seu verdadeiro significado, tomada por tudo aquilo que instiga as pessoas a darem sua vida para conseguir “aquilo” durante o ano, numa sede esperta de “ter” mesmo não podendo, todas instigadas pelas imagens de felicidade verdadeira, mas efêmera emanada delas. Se o ilustre Machado de Assis estivesse vivo, seria intrigante ver o que esse mestre das palavras teria a dizer sobre o assunto. Decisivamente é um enigma, mas deixemo-lo descansar, já fez o seu trabalho. Cabe aos outros agora fazê-lo, pois o interessante é a história em si, nada mais. Não querendo nada mais do que passá-la adiante, julgue-a o leitor como lhe parecer melhor, afinal, aqui não estou para ser Juiz.

          Em sua atual versão – muito aprimorada por sinal – ela reza que uma vez, certa loja não muito importante, contratou um Papai Noel – veja bem: contratou o bom velinho! – para ficar defronte dela e atrair muita gente para visitá-lo e vê-lo de perto antes do natal, pois “ele se sentia triste e sozinho” – vai vendo. Uma honra a ele, sem dúvida, pois o contrato lhe dava quase quinhentos reais no fim do mês, e ele, como precisava muito daquela grana, aceitou muito forçadamente pelas circunstancias atuais e pessoais. De fato, o inocente objetivo fora atendido, mas as pessoas não iam lá somente por causa da longa barba branca do Kriss Kringle, Santa Claus ou Papai Noel como preferir, também iam para ver as novidades de produtos da loja, que se mostravam inteiramente irresistíveis aquele ano atrás do velho e seu trenó puxado por cinco renas – observem bem isso – e a neve feita com um medíocre pano branco de natureza duvidosamente boa, tudo em prol do lucro.

          Enquanto o bem-feitor dos ricos estava lá, o movimento no estabelecimento e ruas próximas cresceu assustadoramente, pois em épocas normais do ano, a animação pelas ruas da cidade é tanta, que parece cemitério fora da temporada de Finados. Ah! Bem feitor dos ricos sim, por que os pobres, coitados, recebem dos ricos o que o bom Noel dão a eles – na verdade descarregam sobre eles o resto, assim eles crêem estarem garantindo os seus lugares no céu, dando lavagem aos porcos. Aliás, durante o ano passam fome e, é só chegar essa data, todos ficam bonzinhos como se fosse mágica, e se ajudam como se todos fossem irmãos e conhecidos de longa data. A mágica do natal, com certeza; depois ela passa, e os necessitados voltam a passar as mais duras privações… E cadê o bom velinho para ajudá-los? Está lá no Bar Pólo Norte, tomando pinga com a Dominga.

          Entretanto, grupos radicais da cidade fizeram uma passeata para tirar o Noel de lá defronte, pois era uma injustiça somente os ricos poderem ser atendidos pelo velho do saco, digo, Papai Noel. Colocaram num carro um som alto e amplificado ao máximo, potente, para gritar aos quatro ventos a tremenda palhaçada que estava se passando. Com uma música bem criativa, em estilo punk, ficavam passando lá a toda hora, atormentando a mente das pessoas para fazerem-nas abrirem os olhos. Dizia a melodia mais ou menos isso:

“Papai Noel filho da puta
Rejeita os miseráveis
Eu quero matá-lo!
Aquele porco capitalista…

Presenteia os ricos
E cospe nos pobres
Presenteia os ricos
E cospe nos pobres”[1].

          Claro que não queriam matar o homem que tirava os seus cobres para ter o que comer, mas sim, quem inventou de o Noel ser o símbolo do capitalismo selvagem, sujo e porco.

          Verdade foi que a polícia logo entrou em ação devido a algumas verdades que a música retratava, e como o povo já sabia e não queria ouvi-las, pediram para a Força fazê-los calarem. Mas esses heróis não desistiram, lutaram bravamente; ficaram sabendo de outra cidade que havia contratado outro Noel – vejam bem: clonaram o coitado para render-lhes níqueis! – e foram fazer suas reivindicações lá na outra cidade, sendo igualmente bem tratados como foram aqui nessa nobre terra do açúcar.

          Aliás, nessas épocas de natal aparece Papai Noel de tudo quanto é jeito, tamanho e cor. O estranho é que toda pessoa sabe a existência dum só, e a cada esquina passada, há um em frente a uma loja vendendo desde balas até crack nos becos obscuros ou à luz do dia mesmo, embaixo dos narizes aduncos das autoridades competentes. Até Papai Noel traficante o Sistema fez: que coisa linda de ser ver.

          Essa foi uma das partes da história, pois um outro dia havia uma enorme muvuca, uma fila colossal de crianças querendo pedir alguma coisa ao Noel. Umas estavam com andrajos rasgados, descalças, fedidas, sujas e mórbidas, dum ar doentio pela falta de alegria e saúde; tinha umas até com feridas, calos na cara e moscas em suas cabeças peladas cheias de piolho, dando repugnância às demais pessoas perto e inclusive ao velho que tinha de aturá-las. Enquanto outras estavam com roupas importadas, perfumadas, maquiadas e com celulares nas mãos e bem penteadas. Queriam ou pediam desde arroz e feijão, caderno para estudar, até um fuzil Ak-47 e um iate para navegar nos mares a fora. Falam até que uma menina de oito anos de idade pediu um ator de Hollywood para ela! Aqui se ignora para qual finalidade ela o usaria. 


[1]Música Papai Noel, Garotos Podres.

          Quando ele falava que ia colocar perto da árvore no dia 25 os presentes mais absurdos, as mais educadas – geralmente ricas – gritavam e esperneavam, tinham ataques de chimpanzés em fúria destruindo tudo; já as mais humildes agradeciam de cabeça baixa e saiam com ilusão de que haveria comida para o próximo ano. Talvez isso matasse suas fomes de seres que acostumaram a se imaginarem comendo para sobreviver nesse mundo cinza. E quando a fome aperta e são obrigados a apelar pela criminalidade, são presos. Não entremos em mais detalhes aqui: o que é de “errado” tem de ser punido, isso é o “certo”; assim como evitar que o “errado” aconteça.

          Mas, porém, todavia e, entretanto, aquele mesmo grupo radical de outro dia, resolveu tomar satisfações, pois “era uma vergonha ver um vagabundo gordo ali em frente a loja enganando todo mundo em troca duma porra de dinheiro para tomar pinga no bar e ficar bêbado o resto do dia. Isso só ajudava o Sistema a se fortalecer! Não matariam ninguém, mas iriam dar um jeito! Se perguntasse depois quem acreditava no Noel, até sob tortura diriam que NÃO! Como as pessoas são burras! Gostam de se iludirem sozinhas, tudo por causa dum sistema que faz seres robóticos e burros para ele existir!”.

          Agora o leitor irá se surpreender com o desfecho dessa história da Carocha. Seriam umas onze da noite, e o Noel estava indo numa rua escura da cidade, rumo a um lugar que nós desconhecemos por inocência. Depois de caminhar um pouco mais, chegou ao seu destino e parou em frente a um lugar interessante, ótimo para a aquisição de bons hábitos e cultura. Em letras grafais lia-se: “Bar do Pólo Norte”. Quem visse isso, dir-se-ia que era ali a morada do Kerstman. Realmente era, pois era lá onde ele “mata as mágoas pelas criancinhas desobedientes”. Vejamos o que ele irá fazer ali.

          Entrou como de costume, se sentindo em casa. Foi direto ao balcão serpeando pelas mesas e corpos offs no chão devido à caninha.  Sentou-se, tirou o gorro e pediu um rabo-de-galo para começar. O garçom, um homem gordo que só se preocupa com os prazeres do intestino e o cheiro de patacas limosas, trazendo a dose, disse:

          – Parece desanimado Paulo, qual é a da vez rapá?

          – Sei lá viu Genésio… Tô pensando se é certo o que eu estou fazendo: se é certo me vestir desse jeito e tirar proveito dos outros…

          – Pará de ser idiota homem! Quem faz caridade é idiota!…

          – Ah! Mas não sei viu… – tornou o Kriss Kringle sorvendo um gole da bebida.

          – Que pensa você?

          – Em nunca mais fazê isso…

          – Pará de ser besta homem! Cê vai ganhá quinhentas pila sem fazer porra nenhuma! Veja que negócião, meu filho!

          – Foda-se… É a última vez.

          – Burro…

          E virou-se para atender outros bebuns que chegavam.

          Dessa vez ele não beberia até virar o ponteiro. Dizem que o verdadeiro significado do natal se apoderou do seu espírito, corrigindo todos seus defeitos. Hum… Vejamos mais coisas então.

          No dia seguinte, foi para seu trabalho. Passou o dia todo atendendo as crianças e os adultos crianças. Recebera a notícia de que a filha do patrão queria “ver ele”. Era dia 23 de dezembro, umas oito da noite e apareceu uma menina toda azeitada, bonitinha, loira de olhos azuis e oblíquos. Dela saía um ar de esperteza feminil, dessas que passa a perna até na sobra da pessoa, e ainda ria escondido depois com uma chama de perversidade em seus olhos de macaca luxuriosa. Chegou, cortou a fila, xingou, berrou e chorou. Então a deixaram sentar no colo do Noel, pois seu show foi convincente. Ela devia de ter uns doze anos, o último ano da boa infância das mulheres.

Acompanhe o diálogo que se seguiu:

          – Mas o que você quer ganhar de Natal, queridinha?

          – Queridinha uma ova!

          – Desculpe.

          – Não desculpo! – e bateu no pobre velinho regenerado.

          – Me diga…

          – Ai velho chato, tá bom! Só vim aqui para não deixar as outras crianças pedir as coisas para você!

          – Hum…

          – Eu quero… – e tirou uma lista do bolso para falar o que ela queria. O engraçado era ela só querer, mas não fazer nada. Intrigante isso…

          Depois de uma hora, o velho quase cochilou, e a menina não parava de falar. Na fila todos estavam com um ódio danado dela. Por fim, ela terminou e, ele despertando do cochilo disse:

          – Só isso?

          – Não…

          Na vila soltaram um “ah!…” prolongado. Gritaram até um “sai daí que você não vai deixar nada para os outros!”; o que ela respondeu com um gesto de dedos, bem especifico que não cabe aqui mostrar ou descrever.

          – Mas que mais você quer?

          – Quero um carro do ano, um homem bem gostoso e oito milhões!

          – Ah sim…

          E ele começou a pensar. Saiu um cheiro de queimado devido ao esforço cerebral e, acredite quem quiser, por um desses milagres que só acontecem nessas épocas do ano, APARECEU O CARRO DO ANO, O HOMEM GOSTOSO E OS OITO MILHÕES! Oh! Apareceu do nada, ali ao lado da calçada, sob o olhar de todo mundo que estava embasbacado. E ele se perguntava como fizera isso, coçando a cabeça e lembrando se tinha tomado muita ontem.

          A menina desiludida, disse:

          – Que história é essa, maluco?…

          Este vendo a chance de linchá-la soltou à queima-roupa:

          – Seu presente!… Ora essa!

          – Aquilo?! – e apontou. Vai se foder velho pinto mole!

          Vejamos o que era. O carro era um Fusca todo estourado; o homem gostoso tinha dentes de burro e fazia “inhó!” a todo instante, olhando para as oito enormes espigas de milho dentro do veículo. E tudo isso com uma iluminação barata vinda sabe-se lá donde.

          E o resto das pessoas choravam de rir, rolando no chão.

          – Aí truta, que palhaçada é essa?

          – Bom, aí está o carro mais fodido do ano, o homem mais gostoso de todos – você não pediu um que fosse inteligente – e os oito milhões para alimentar ele! Haha!…

          E a menina desabou num choro copiosamente falso e bem treinado, típicos das mimadinhas. Mas a multidão rachava o bico.

          Então a atriz fora embora reclamar com seu pai e, não dera nada, pois ele gostou de ver alguém pregar uma peta na filha que só lhe dava dores de cabeça.

          Eis a história, nada mais. Não sei como ela estará o ano que vem, mas encontra-se nessa versão. Dizem ainda que o rapaz que fazia o papel do Noel virara mesmo o velho que anda de trenó, cortando lenha no pólo. Outros dizem que entregou a vida ao álcool, e há as más línguas que falam que seqüestrara a meninha e fugira com o Fusca mais o homem e os oito milhões. “Histórias”… como dizem por aí. Para mim, tudo isso é uma coisa inventada que serve para mostrar as belas coisas da cidade. Ah! Quanto aos garotos da música, não fizeram nada a respeito, pois quase foram presos numa tentativa furtiva de seqüestrarem o velho. Contudo, formaram uma banda de rock, e hoje cantam em bares de natureza duvidosa. Porém, ainda continuam mostrando algumas verdades em suas letras taxadas de doidas pelos quatro acordes metódicos.

          Se essa história é verídica ou não, não o sei eu, o certo é que há muitas coisas embutidas nelas. Seja como for, feliz natal vai!…

19 de dezembro de 2008.

El Phodaum

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